quinta-feira, 10 de abril de 2008

O Compulsivo Devorador de Vidros

Percorre desassossegadamente a deserta rua, embrulhado nos mais longínquos e obscuros pensamentos. Benjamim mostra-se absorto de tudo o que o rodeia. Tudo isto que, afinal, nada é! Dezenas de pessoas o rodeiam.
Milhares de vozes o rodeiam, porém, nada lhe parece ser Português. O Português que, por vezes, encontra numa noite de insónia, num (não) qualquer canal, ou no canto inferior esquerdo da última página de um jornal abandonado. Mesmo por cima deste jornal, havia um cartaz que anunciava “Nova Exposição de Olaria em Barcelos, não perca! De 18 de Janeiro a 14 de Fevereiro”.
“Porque não me falas, maldito jornal?!”, pergunta Benjamim.
“Ei, rapaz! Sim, tu! Podes dizer-me o que podemos fazer enquanto O Autocarro não chega?”, pergunta um idoso que estava acompanhado por mais cinco pessoas com, sensivelmente, a mesma idade. Benjamim limita-se a apontar o cartaz. Sim, o mesmo cartaz. Não. Não! Não é o mesmo cartaz que vira. Este anuncia: “Nova Exposição de Olaria em Barcelos, não perca! De 20 de Fevereiro a 15 de Março”
Benjamim prossegue na sua caminhada. Não observa, portanto, O Episódio: segundos depois de os idosos acabarem de ler o cartaz e abandonarem o local, sorrindo satisfeitos, uma criança vê o cartaz, lê-o com atenção, observa-o. Num gesto brusco, arranca o cartaz da parede e, com um gesto mecânico (como se de um Hábito se tratasse), coloca no chão a folha imprestável que tem nas mãos.
Benjamim senta-se, sonolento…

Aprecia, finalmente, o que o rodeia. Ruas inundadas de pessoas que, a passos largos, se deslocam na mesma direcção: Oeste. A mesma direcção em que, segundo o “Boletim Meteorológico, sopraria o vento em Portugal.
Mas, algo desperta ainda mais a atenção de Benjamim! Uma criança que, de mochila às costas, filme de Fellini na mão e olhar de ligeira loucura, fixava algo à sua frente (algo que Benjamim conseguiu identificar). A criança deslocava-se, precisamente, no sentido oposto ao de todos os outros. O olhar da criança cruza-se com o de Benjamim.
Ambos vêem algo a esvoaçar, como uma ave perdida (esquecida?). Consegue ler-se no panfleto esvoaçante “Sean Riley & The Slowriders em Barcelos – dia 18 de Abril”.

Benjamim levanta-se de um sobressalto. É um interminável fim de tarde em que o sol já não brilha. Talvez no Porto, ou Lisboa! Em Barcelos não.
Procura o chão. E, de novo, Benjamim se acomoda no banco, percorrido por uma desconfiada alegria, como se milhares de vidros no seu estômago tivessem sido (por breves momentos) reduzidos a pó. No chão, encontrava-se apenas um cartaz onde nada se conseguia ler: alguma ave dispusera, por cima do jornal, uma quantidade significativa de excrementos.
Ilustres Excrementos de Ave




Bernardes

1 comentário:

el psi disse...

No tempo em que todas as garrafas eram feitas de um material compósito à base de areia, eu não devorava compulsivamente vidro, mas crocodilos. Fi-lo de uma forma tão natural que nem me dei conta que, se calhar, era algo ou alguém, mas sempre um pedaço de mim próprio que consumia.
Parabéns…