segunda-feira, 28 de abril de 2008

O Som do Nada

Por isso é que só ele ouviu, pelas tantas, tarde para quem se deita cedo, uma frágil música que entrava pelas frinchas da porta e do telhado, grande silêncio haveria nessa noite em Barcelos para que um simples violino, tocando na sala nobre da Câmara Municipal, com portas e janelas fechadas por causa do frio, e frio não estivesse, assim impunha a decência, pudesse ser ouvido por um velho que a idade ia ensurdecendo.
Velho esse que pelo facto de ouvir uma simples melodia rejuvenesce, virtude da Primavera quando começa a chegar-se aos braços do Verão. Tentando esquecer as sombras da rua, dos rostos daqueles que, tal como ele, são filhos do nada. Esquece e aquece ouvindo o som do violino.
Quando a vida é um nada e o nada já não tem vida, tudo, até o chão que altos e emproados senhores pisam, se torna familiar.
Estendendo a mão, só pede que alguém a aperte para que não se sinta tão só, mas este povo que nada entende, oferece uma simples moeda que nada poderá comprar, pelo menos nada que o velho necessite de verdade.
Pobre velho, no meio de tanta gente, sentindo-se tão só… Procura no fundo do seu poço alguma lembrança que lhe aqueça o coração e a única que encontra é o som daquele violino, numa noite…


Heika Castro

Sean Riley & Slowriders - O Concerto

Na passada sexta-feira o Subscuta presenteou, mais uma vez, os barcelenses com um bom concerto, protagonizado por excelentes intérpretes: Sean Riley e os “seus” Slowriders.
Os habituais atrasos, para apimentar a expectativa. As também habituais conversas de ocasião, trocadas e repetidas, enquanto se espera pelo real objectivo da noite.
Enche-se então o Auditório da Biblioteca Municipal. Desde jovens adultos, adolescentes, a pessoal que, nota-se, apesar de aparentemente ultrapassados pela música actual, estão sedosos de reviver um passado não tão longínquo quanto poderá parecer. Ou viver um presente que não é só de uma geração, é de cada um que o quiser abraçar.
Começam então os artistas a apresentar-se. Estranha-se, num primeiro instante, a falta de alguém: “então eles não são três???”. Ok, eles são três, mas cá estão apenas dois! Ouvem-se murmúrios (alguma inquietação) que se desvanecem, momentaneamente: um dos elementos não veio. A bateria não irá eclodir em baques e estridentes sons, hoje não.
“Those Red Days” faz com que toda a inquietação e embaraço que se faziam sentir desaparecessem. Ok de novo, é acústica, mas o baixo dá para compensar, e de que maneira!
Música, melodias e sons, ornamentados por diversos e caricatos instrumentos se vão sucedendo, desde uma melódica e uma harmónica, a umas “espécies” de quadro e lápis, mais parecendo um instrumento roubado a uma criança, na véspera. Maravilha! Cada pessoa presente acompanha o ritmo do batuque, ou com o pé, ou “dedilhando” em cima do próprio joelho, não esquecendo aqueles que daquele sítio ou daquele momento, apenas sabem o que ouvem, de resto, navegam por outros locais, outros momentos. Pela Residencial Arantes, quem sabe? O Sean Riley também esteve lá!
Deixarei os pormenores mais técnicos para quem tem mais e melhores conhecimentos acerca dessa “matéria”. Mas uma coisa não me podem negar, a qualidade destes senhores vindos de Coimbra! Embrulhado pelos mais calorosos e reconfortantes efeitos visuais, senti que estava a assistir a um dos melhores concertos a que já assisti, e não é “conversa fiada”, tal como disse Sean (ou Afonso, Filipe, Domingues, Marta, não é por aí).
Agora que se aproxima a época mais importante para Barcelos, Sean Riley & Slowriders foram uma boa “lufada de ar fresco” para aqueles que não têm cinquenta ou sessenta (Paco Bandeira), quarenta (Luís Represas), e os que não têm, até, uns cinco ou vinte cinco anos de idade (Anjos). Mais ano, menos ano.

E lá dizia Sean Riley: “A foda é o falsete”…


Jorge Marques

Carta

Pela última vez falarei, ou escreverei, ou sequer pensarei sobre o assunto que explorarei nos próximos parágrafos. Chamem-lhe uma despedida. Chamem-lhe recomeço.
Despeço-me em breves palavras de meses da minha ainda curta vida. E tudo aquilo que penso ou crio não tem valor ou utilidade a alguém que não eu. As minhas viagens cognitivas trazem prazer, unicamente, a mim. Agradeço o bilhete de ida e volta. Todas as descobertas e procuras. A descoberta da humanidade que não sabia possuir. Mais que os protestos, mais que todas as glórias, foram os momentos simbólicos e mitológicos em que mergulhei. Parto sem peso na consciência. As máscaras foram retiradas e agora mais não tenho que recear. Nada de mim está escondido. Consigo ver para além do meu cérebro, para além do meu ser. Longe estava e voltei.
Alegria e revolta. Consonância difícil e perigosa: saudável. Os tempos andaram e tudo foi enterrado no fundo do mais profundo oceano. O barco veio e quis ser ele próprio. A escolha não foi minha. Fiquei pela metade: um dia eras o expoente, noutro já não existias.
Tal como te despediste de Woody Guthrie eu me despeço de ti. Porém sem o brilhantismo das tuas palavras. Apenas com a humildade dos meus pensamentos e o egocentrismo da minha liberdade. Encontrar-te-ei um dia quando a minha realidade não for mais Freewheelin’. Nesse dia voltaremos a ver-nos como velhos amigos. Contaremos velhas histórias, recordações e piadas familiares. Dores antigas não mais serão tristeza. De tudo não restarão acordes menores.
Despeço-me onde tudo começou: Sara.



Zita Esquerda de Sá.

Os Galos Aconselham

Esta semana os galos aconselham:


Cinema:
Beijos Roubados (1968), François Truffaut

Literatura:
Fernando Pessoa: Obra Poética - Volume Único (2005), Fernando Pessoa

Arte:
Exposição Cerâmica Comtemporânea "un pont de mar"
(Museu de Olaria de Barcelos) 19 de Março a 05 de Maio

Música:
In Rainbows (2008)
Radiohead

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Lembra-se de Glenn Jones?

Glenn Jones é um nome que merece uma memória. Todos nós devíamos ter alguma imagem narrada por uma banda sonora colorida, uma que nos lembrasse (a todos aqueles que gostam de viver com todos os sentidos) a experiência simples de ouvir uma história sem texto. Eu fui um dos sortudos que conseguiu uma memória, não a posso vender, posso apenas descrevê-la, mas não ficará muito perto da realidade:

Barcelos, 15 de Março de 2008, Salão Nobre da Câmara Municipal, noite escura. Glenn Jones era o homem de que se falava, “o tal americano” que, como tantos outros, vinha para vender música. Após um pouco de espera, o salão encolheu, um homem ficou grande e as suas músicas pequenas em falso orgulho. De forma íntima foi como tudo se passou, mas apenas no início, porque logo se transformou em pessoal.

Doze cordas de uma guitarra (que não podia ser mais dedilhada) podiam-se contar, e músicas surgiam como se uma idade média ainda não tivesse acabado e uma grande imaginação se mostrasse ao público. Pausas para falar com os ouvintes, que naquele momento já se sentiam amigos de longa data e tempo para explicar que a inspiração veio de fontes tão diversas como um casamento ou um livro. Seis cordas diferentes deslizaram e trouxeram um “blues orgânico”. Um banjo fez uma intervenção pequena, como a sua própria altura, mas nem por isso menos elaborada. O local tornou-se perfeito, o eco tornava naquele instante um acontecimento num sonho. As afinações não mentiam, e da mesma forma que o mestre as mandava serem gentis e dóceis, derretendo-se ao toque, ordenava que se tornassem agressivas e profundas, até sombrias. No momento em que pensávamos que a surpresa já não era possível, saímos de um Salão Nobre e viajámos para o interior de uma fábrica de cimento. Ao comando do tímido génio das histórias sonoras e guitarras domadas, obedecemos, fizemos com que os pequenos aparelhos que nos ajudam a comunicar se tornassem objectos de arte. A dissonância de sons elevou-se e todos ficaram cientes que a magia não existe, mas existem experiências mais fortes que o imaginário.

Só lamento que a minha memória não tenha sido repetida em todos os presentes. Nem todos conseguimos não ter medo do que não conhecemos, mas há lugar para todos. Todos podem ter uma memória com Glenn Jones.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

A Europa morreu...

Rufando neste meu sonho impune possa eu esperar, acordar o teu indignado coração, tão velho, porém tudo neste mundo se equilibra e compensa, como já foi verificado.
Que rugas são essas tão profundas que fazes transparecer e que mesmo usando essas máscaras nem o sol consegues esconder?
Eras tão jovem, bela e ingénua que numa só palavra te descreveria como a “verde Europa”, fazes feliz a quem por ti dá tudo, quem sabe a vida. Crianças, jovens e velhos lutam do teu lado para que sejas a maior, tu ó “nostra terra”.
Mas, de verde passaste a azul e nem num piscar de olhos viraste cinzenta. Tão cinzenta como a cor das cinzas daqueles corpos que por ti passaram e que tu por seres tão cruel…simples pó se tornaram.
Porquê Europa? Porque mandaste que me ligassem a anunciar a tua morte quando já sabias que de ti já nada restava há décadas?
Se soubesses o quanto chorei para que tudo isto não passasse de um sonho…!

Catarina Cachada

Os Galos Aconselham

Esta semana os galos aconselham:

Cinema:
A Máscara (1966), Ingmar Bergman

Literatura:
Hell's Angells (1965), Hunter Thompson


Arte:
“O 25 de Abril e a BD – uma revolução desenhada”
(Galeria de Arte de Barcelos) 4 a 27 de Abril


Música:
Farewell
Sean Riley & The Slowriders

'Tamos in

Involuntariamente premi Pausa. Ouvi: “Morrerei em paz: está tudo pago!”. Comecei a imaginar como seria morrer sem saber o que é contrair dívidas (não necessariamente financeiras). Imaginei um moribundo a tentar ultrapassar os últimos minutos, sem continuidade e perto do fim. Não me pareceu muito mau morrer. Talvez quando morrer me entretenha a sonhar como teria sido a minha vida se não tivesse especulado acerca da minha morte, como teria sido se tivesse entrado no autocarro errado e, em vez de Barcelos, tivesse almoçado noutro local. Algures. Não aqui.
Ainda no rescaldo de uma overdose de Bob Dylan, e depois de umas seis horas desde que Sean Riley & the Slowriders actuaram no Auditório da Biblioteca: Harry Rivers ainda não me saiu da cabeça. De qualquer forma, encontrei os The Birds. Cantaram para mim. Convidaram-me a passar pelos 60’s, beber um café e conversar sobre política. Mas não fui: o passe perdeu a validade. Em vez disso, preferi passear, sob a chuva, pelo século XXI ali no InCima Café.
Depois do meu habitual copo de leite com café, desci a rua da Estação, em direcção ao Paraíso. Paraíso. Perdão: Paraíso! Gritos se ouviam down the street. Era o Humphrey Bogard a discutir com um chinês. Encontrei uma conhecida que me contou a história: aparentemente Bogard tinha lá comprado um verniz das unhas para a Lauren Bacall. Desde então Bacall nunca mais tinha tido um orgasmo: agora Bogard queria satisfações. O chinês disse que não era responsabilidade dele, porque, na verdade, o verniz era “Made in Tailândia”, apesar de lá dizer “Made in China”... Pela primeira vez ouvi alguém praguejar em mandarim.
Ontem à noite, antes de ir ao concerto, li o mail que o Paulo Furtado me mandou a confessar que não aguenta mais ouvir Wraygunn, e que o sonho dele era filmar um vídeo para a Mtv inspirado no Like a Virgin. Comentei o facto com a senhora do Top Gun (por sinal o melhor clube de vídeo de Barcelos!) e ela respondeu-me: “Deixe lá, Isabel, neste mundo tudo é possível: imagine só que até o Marcello Mastroianni foi cliente do fisioterapeuta do prédio atrás do Camilo!”. Eu disse-lhe que o meu nome não era Isabel, mas sim Zita. Ela retorquiu: “Mais tarde ou mais cedo descobrirás que nada mudou.”
Sinistro.
Faltam poucos dias para a viagem, porém, não quero ir. Sem esperanças vagueio pelas ruas molhadas da cidade do Poleiro.

Afoguei o Manifesto.



Zita Esquerda de Sá

Sarabande

II
Deixei de pensar. Não há muito mais a pensar. Afinal de contas a Esquerda morreu. Vá lá: isto não é música para os vossos ouvidos. Like a song (“Hey! Mr. Tambourine Man play a song for me. I’m not sleepy and there is no place I’m going to”): ouço e esqueço. Porque tenho que me deslumbrar com ideias passadas, ou com a Beat Generation? Por muito que se tente o contrário, o livro terá sempre mais valor que as suas citações mais célebres.
Pedi ajuda a Deus. Um deus qualquer; encontrei a sua morada num papel rasgado, que voou até mim, ali perto da igreja matriz. Ele disse-me para aguardar pela minha vez na sala de espera. Quando finalmente se mostrou disponível, simplesmente me sussurrou que a revolução deveria ser feita na consciência e não na rua. Aconselhou-me a aprender inglês e viajar com os
Hell´s Angels.
How many roads afinal? Hei-de desfilar os meus sonhos, em marchas e protestos, na Times Square, e nas avenidas de Washington. Ou talvez fique mesmo aqui pela Rua Direita. Caminharei ao som de hinos americanos acerca da igualdade do Homem, caminharei ao som de canções que já ninguém canta. Rejubilarei a liberdade que a morte dos meus ideais comunistas me deu.
I’ll be free at last, thank God almighty, I’ll be free at last.
Claro que algo acontecerá: não seria crescer se algo não acontecesse. Entretanto a chuva cai e faz sol: “Shit... I’m waiting for the sun to shine”. A chuva vai cair, será dura e esperançosa. Andarei por entre vales e florestas. Passarei por oceanos mortos, será como um poema paranóico, frio e pedrado. Excitante! Mas facilmente esquecível...
Convido-vos agora a não serem idealistas, convido-vos a não misturarem a sensibilidade da vossa juventude com o zelo da futura idade. Crenças e mais crenças. Acaba um dia. Tal como as conversas nas estações só duram até o comboio chegar.
Sim, eu sei. Todos aqueles que sonharam um dia ser personagens de um road movie acabarão velhos, e distantes: encaixados, e conectados com a temática de um filme de Ingmar Bergman. Verão à vossa frente relógios sem ponteiros e relíquias do princípio do século XVI. Passarão a adorar as vossas glórias passadas e o tempo fluirá. Dirão com prazer que o vosso ídolo de juventude era o Álvaro Cunhal, mas nunca leram o Manifesto. Esperarão, secretamente, uma revolução que nunca chegou. E para quê? A tal viagem nunca foi feita, e tudo o que viram foi a doçura da ignorância. Sentir-se-ão frustrados pelo tempo perdido em maquilhagem, e em leituras da Vogue. Perderão todos os vossos objectos míticos, ou nostálgicos: o formato digital passará de moda, e vossos descendentes não darão valor ao disco rígido do vosso coração. Haverá poetas que ressuscitarão. Serão os novos Camões, os Pessoas, os Ginsbergs descobertos e revisitados. Mesmo assim, os velhos deixarão de ser velhos pois não mais existirão rugas. Não mais serão estes os governantes: serão destituídos de seus cargos quando o primeiro cabelo ficar branco, quando a barba não mais crescer escura.
“There’s no black and white, left and right to me anymore. There’s only up and down, and down is very close to the ground. And I´m trying to go up without thinking about anything trivial, such as politics”. Porque me tenho que sujeitar a uma descoberta que não foi minha; Porque necessitam de categorizar? Respondo-vos hoje, com a sinceridade da minha adolescência não juvenil, que não o farei: Não tomarei um ou outro caminho. Caminharei onde não há estrada. Construirei a minha rua à medida que avanço.
Não me importo que falem no termo outsider. Tenho orgulho até. Por isso, se quiserem fazer a vossa viagem, vão. Aqui a “non-insider” vai só...

“The only people for me are the mad ones, the ones who are mad to live, mad to talk, mad to be saved, desirous of everything at the same time, the ones who never yawn or say a commonplace thing, but burn, burn, burn, like fabulous yellow roman candles exploding like spiders across the stars...”
-Jack Kerouac

Zita Esquerda de Sá

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Caros barcelenses, tenho a honra de vos trazer mais uma boa quantidade de notícias do nosso tão amado concelho. Estou aqui, de novo, perante vós, para vos alertar, em “primeira-mão”, para algo que está para acontecer em Barcelos. Algo tão importante que ficará para sempre escrito nos manuais de História de Portugal dos nossos netos, bisnetos...
Tenho o prazer de vos anunciar, caros barcelenses, que Barcelos organizará o “Festival de Jazz & Blues” no ano 2061. Sim, leu bem!
O POLEIRO foi alertado para este evento bombástico pela própria Sra. Secretária da vereadora da Cultura do concelho de Barcelos. “Foi uma decisão difícil. Tínhamos várias hipóteses em cima da mesa, desde a realização do 80º Festival do Acordeão Diatónico (instrumento popularmente designado por concertina), acolhendo alguns exemplares deste instrumento, provenientes de vários países (mas tocados por portugueses), um Festival de Folclore e, até, um desfile de fardas oficiais da Mocidade Portuguesa”, informou a Sra. Secretária. Após perguntarmos quais tinham sido, então, os critérios que levaram à escolha do “Festival de Jazz & Blues” como o melhor evento a realizar em Barcelos, a Sra. Secretária da vereadora da Cultura respondeu, com a mesma delicadeza, que “Os Festivais do Acordeão Diatónico e de Folclore tinham sido colocados de parte, após vários estudos que prevêem uma inexistência de tocadores de concertina e de dançarinos de folclore no ano 2061”.
(Perante esta dolorosa afirmação, O POLEIRO contactou de imediato o consultório da famosa taróloga e bolicóloga (Bollicaologia é a arte de prever o futuro nos cromos do Bollicao), Maya. “Em 2061 existirão doze tocadores de concertina que, em simultâneo, dançarão folclore. Destes doze, dez serão barcelenses!”, afirma, com convicção, Maya. “Ah! Por sua vez, desses dez barcelenses, nove só poderão dar concertos no Auditório S. Bento Menni, o mais próximo da casa dos artistas”, continua.)
Entretanto, a Sra. Secretária finalizou a sua explicação: “Por fim, a organização do desfile de fardas oficiais da Mocidade Portuguesa está inviabilizada desde que a Câmara Municipal de Barcelos ofereceu todas as fardas a uma organização de caridade que recolhe vestuário para os habitantes do Zimbabué, que vivem numa crise social e económica que se agrava a cada dia que passa”. Perante este nobre acto, o actual Presidente do Zimbabué, Robert Mugabe, já elogiou publicamente o concelho de Barcelos!
Mas não são apenas estas as boas novas que tenho para vos contar! Não, Barcelos revela-se um concelho com impressionante poder de organização de eventos. Assim, relembro-vos que, caros barcelenses, está a chegar a época mais importante para a nossa terra e, claro está, para todos nós: a Festa das Cruzes! O POLEIRO destaca, de entre os demais eventos a realizar no âmbito desta grande festa barcelense, a realização do tão esperado concurso “Quem Quer Ser o Terceiro Elemento dos Anjos?”, no dia 3 de Maio, Feriado Municipal. Para este concurso estão já inscritos nomes como Luís Represas, Paco Bandeira, João Pedro Pais, entre outros. De fora deste concurso estão já confirmados, com muita pena nossa, o grande músico Avô Cantigas e um Rotweiler, cuja “potente” voz foi mais uma das grandes descobertas que o Youtube nos proporcionou. Este Rotweiler não poderá estar presente devido a conflitos entre a sua raça e alguns Ministros do Governo Português.
Por fim, informo-vos de que o projecto da nova ponte Barcelos-Barcelinhos avança a passos largos para a sua conclusão, o que deixará satisfeitos, certamente, todos os cidadãos que têm de enfrentar enormes filas de trânsito na “Ponte Velha”, às Quartas e Sextas à noite, sempre que se aproxima a hora de início de mais um evento organizado pelo Zoom ou pelo Subscuta.
Menciono, também, o adiamento da inauguração do Teatro Municipal Gil Vicente devido a problemas de carácter “técnico-emotivos”, devido à cor do edifício que, nas palavras do nosso querido Zé da Esquina: “É uma afronta ao nosso coração barcelense. Edifício amarelo em Barcelos é apenas um, o edifício da Casa de S. João de Deus e mais nenhum! Queremos um teatro que dê a imagem de uma cidade de Barcelos vincadamente afecta a eventos culturais de alto prestígio e qualidade. Esta teoria foi já defendida pelo meu avô e eu, em honra deste meu familiar tão querido – Deus o tenha em eterno descanso! –, continuo a lutar contra a inauguração do teatro, enquanto a sua cor for amarela!”, afirma peremptoriamente esta incontornável figura barcelense.

Voltarei,

Agripa

Solidarização do Egocêntrico

Revejo-me no espelho, uma vez. Apenas uma vez até descobrir, desolar, solidificar e dizimar o que ouço lá no fundo da audiência teatral gritar. “Faz. FAZ!”, ouço-os dizer num murmúrio ensurdecedor. O personagem ao meu lado declama: “Estarás aqui amanhã, mas os teus sonhos não. Não o faças”. Convincente, quase irrefutável.
Essa falsa inocência deixa-me com febre de soltar as palavras, os meus lábios mexem mas não consigo ouvir as palavras que se formam. De repente, todos os holofotes se centram no espelho que reflecte aquilo que eu deveria ser.
Lentamente, abandono o palco, a luz reflectida pelo espelho persegue-me, ofusca os demais aqui presentes. Alguém transporta o espelho, que ainda reflecte a minha imagem, para o centro do palco.
Continuo, sem o menor ruído, abandonando o espaço. Do meu lado algo avisa “PROIBIDO fumar”. Um impulso, só preciso de mais um impulso para alcançar essa porta de ferro. Parece entreaberta! No chão um painel publicitário que anuncia “Coming Soon”, mais à frente o interruptor. Apresenta-se off.
Uma mão suave me agarra, de ancestral toque e subtileza, que apenas permite a percepção de sua presença através do odor pleno de êxtase liliáceo que liberta. Pormenor? Pontas pavorosamente massacradas pelo acaso. Esta mão tem tão grande poder que nem toda a força conhecida a separaria do meu braço amedrontado, que segura.
“Pensas que consegues trocar um sofá confortável por mudança?”
O aperto suaviza e alcanço a porta. Vejo-me rodeado por nada, um nada pronto a ser colorido, tal como a última página de um caderno que espera incessantemente que algo em si seja escrito, desenhado, riscado.
Click, a porta fecha. Caminho e as minhas pegadas ficam marcadas no nada. Não sinto, não vejo, não ouço, não cheiro, nada saboreio de tanto nada em que me perco, me infiltro, que serei dentro de breves momentos…!
Um toque suave, a percepção. Ruídos de lábios que chocam, e se reproduzem formando palavras. Um odor, o êxtase! A luz, a sombra, a cor, tudo se forma.
A mão. Essa mão, companheira de ilusões e de fantasias ao longo de toda a realidade.
“Estaremos alguma vez preparados para mais uma página? E para a última página?”, ouço.

“Não te esqueças: já estás a manusear A Página”.


Joana de Neves

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Rumos

Muita vontade tenho de partir e não mais voltar. Ir e não regressar. Começar algures noutro local. Rumar um sítio inexistente aqui. Partir no silêncio da noite, na descrição do escuro, no vácuo prometedor do agnosticismo. Sem tudo e com nada. Partir e não mais voltar.
Encontrar a liberdade que não sei existir. Romper os horizontes longínquos. Além-mar viver. Percorrer o mapa da esperança, e depois, voltar, e continuar logo a seguir. Não mais ter saudade. Não mais sentir o cinzento das ruas portuguesas, nem o peso da herança de um país que navega contra o vento da mudança.
Só, irei, partirei e não voltarei. Percorrerei a noite da luz. Serei livre e inconsciente, sem o peso da melancolia do passado. Sem folar. Correrei e sentirei. Não mais me lembrarei das ruas cinzentas do meu país. Não mais o vento marítimo português me tocará. Não sentirei saudade.
Vontade enorme de partir. Meu orgulho, herança antepassada, e pesada, morrerá. Minha alma estará vazia ao esquecer tudo o que não é meu, mas entranhado está. Irei para longe, não mais te verei...
Ó Portugal, minha casa, perdoa: a negação que faço ao que de teu há em mim; o disfarce da melancolia fadista e a cinza de minha alma. Arrepender-me-ei de omitir os acordes da tua guitarra, e de amaldiçoar tuas cidades à beira mar. Não voltarei a ignorar a tristeza das ruas e vielas vazias do interior, nem o provincianismo do litoral. Em dias tristes e opulentos viverei até teu perdão alcançar. Porém, antes, terei de partir. Liberta-me e voltarei.


Isabel Arantes

Otto & Mezzo


Ora vamos lá contar uma história. O Marcello chega à beira do Federico e diz-lhe: “Tão pá? Vamos fazer um filme?”. Federico responde: “ ’Bora pá, mas estou sem ideias”. Marcello desiludido questiona: “Mas pá, e então aquele pedacito que sobrou no outro dia?”. Ao que Federico responde: “Pá, pois é...! Mas o pior é arranjar um título”. Marcello resolve a situação dizendo: “Ouve lá, já fizeste oito filmes, e tens metade de filmagens sem rumo, não me parece tão difícil assim: 8 ½, pá!”.
Wait a minute, um filme chamado 8 ½ (Otto e Mezzo)? Isto não vai dar certo...
O filme começa. Ouve-se lá ao fundo um som. Carros alinhados e um autocarro. Marcello olha para idosos ao seu lado esquerdo. Subitamente o ar condicionado sufoca-o. Tenta, desesperadamente, abrir a porta. Não abre. Porra ajudem-no! Ninguém ajuda, e ele continua, mas ninguém ajuda, tudo olha, ninguém vê. Até que ele sai e voa. Aí vem o mundo felliniano montado num cavalo. “Desce, definitivamente”. Marcello acorda.
“Que está a preparar de interessante? Mais um filme sem esperança?”. Não, não, alto lá: o que mais há aqui é esperança, não fosse este um filme sobre um realizador de cinema com uma depressão e obcecado por uma deusa, chamada Cláudia Cardinale. Pode não haver luz ou esperança, porém Cláudia entra em cena e tudo pára. Nem a banda sonora de Nino Rotta se impõe. Não! Esta é Cardinale, a Cláudia das formas perfeitas.
O Filme continua...
Mastroianni diz a Fellini: “Eu deveria era a estar a fazer filmes com a Sophia e com o De Sica, não estas tuas fascinações pela irrealidade. És louco e eu sou pior que tu”. Fellini faz-lhe a vontade e intelectualiza o texto...
Comunismo está lá. Pois claro. Está sempre, não se pode fazer um filme sem a componente socialista. Até porque fica bem dizer: “O marxismo é uma boa teoria. Mas na prática...”. Como tal perguntam a Marcello (sim, volta a ser Marcello) quais as relações entre o catolicismo e o marxismo. Ao que Mastroianni (não, já não é Marcello) responde: “Quer saber a que partido político pertenço?”. Obviamente que Fellini foge à questão... Ainda não vos contei? Marcello é Mastroianni e Mastroianni é Federico, este por sua vez é Fellini.
E para quem ainda não tinha percebido que está a ver Fellini então suas dúvidas deixam de fazer sentido 50 minutos após o início do mesmo. Aí vem a típica dança, sexual e propícia a orgasmos inesperados. Pode ser igualmente mote para sentir a nostalgia da infância perdida...
“No meu filme acontece de tudo”. Por isso há quem substitua cinema pela vida. Pois nesta não há oportunidade de perguntar: “Senhor realizador, o que faço?”. Porém, não é no cinema que aprendemos a fazer “um filme honesto, sem nenhum tipo de mentiras” pois o cinema existe na vida, e a vida não passa de um cinema: irreal. O sonho do autor é frustrante: o filme “que pudesse ser um pouco útil a todos; que ajudasse a enterrar para sempre o que de morto levamos dentro de nós”. Não é possível, porque nem o próprio é capaz de enterrar o que quer que seja.
Cláudia volta: “Lindíssima. Jovem e antiga. Criança, mas já mulher. Autêntica, solar. É ela, sem dúvida, a salvação”. Cláudia percebe que o papel que lhe é reservado no filme não existe. Tem toda a razão, de facto não existe o papel. Nem sequer existe o filme. Não existe nada. Em lado algum. Mastroianni só quer que tudo acabe...
Resta o fim. Eles rodeiam-no. Fugir que nem um romântico incurável é a solução:
“O que é esse clarão de felicidade que me faz estremecer e me força, vida. Peço-vos desculpa, doces criaturas, não tinha percebido. Como é justo aceitar-vos, amar-vos. Como é simples. Sinto-me como liberto. Tudo me parece bom. Tudo tem um sentido, é verdade. Gostaria de explicar. Mas não consigo... Voltou a ser como era. De novo confuso. Mas esta confusão sou eu! Sou como não queria ser e isso já não me assusta. Dizer a verdade, o que não sei, no que acredito, o que ainda não encontrei. A vida é uma festa! Vivemo-la juntos!”. Circo.

Porreiro, pá!




Isabel Arantes

Os Galos Aconselham

Esta semana os galos aconselham:

Cinema:
Control(2007),Anton Corbijn


Literatura:
O Memorial do Convento(1982), José Saramago

Arte:
Exposição de Pintura "Duas Mãos, Um Sentimento"
(Sala Gótica dos Paços do Concelho) 7 a 18 de Abril

Música:
Neon Bible(2007)
Arcade Fire


O Compulsivo Devorador de Vidros

Percorre desassossegadamente a deserta rua, embrulhado nos mais longínquos e obscuros pensamentos. Benjamim mostra-se absorto de tudo o que o rodeia. Tudo isto que, afinal, nada é! Dezenas de pessoas o rodeiam.
Milhares de vozes o rodeiam, porém, nada lhe parece ser Português. O Português que, por vezes, encontra numa noite de insónia, num (não) qualquer canal, ou no canto inferior esquerdo da última página de um jornal abandonado. Mesmo por cima deste jornal, havia um cartaz que anunciava “Nova Exposição de Olaria em Barcelos, não perca! De 18 de Janeiro a 14 de Fevereiro”.
“Porque não me falas, maldito jornal?!”, pergunta Benjamim.
“Ei, rapaz! Sim, tu! Podes dizer-me o que podemos fazer enquanto O Autocarro não chega?”, pergunta um idoso que estava acompanhado por mais cinco pessoas com, sensivelmente, a mesma idade. Benjamim limita-se a apontar o cartaz. Sim, o mesmo cartaz. Não. Não! Não é o mesmo cartaz que vira. Este anuncia: “Nova Exposição de Olaria em Barcelos, não perca! De 20 de Fevereiro a 15 de Março”
Benjamim prossegue na sua caminhada. Não observa, portanto, O Episódio: segundos depois de os idosos acabarem de ler o cartaz e abandonarem o local, sorrindo satisfeitos, uma criança vê o cartaz, lê-o com atenção, observa-o. Num gesto brusco, arranca o cartaz da parede e, com um gesto mecânico (como se de um Hábito se tratasse), coloca no chão a folha imprestável que tem nas mãos.
Benjamim senta-se, sonolento…

Aprecia, finalmente, o que o rodeia. Ruas inundadas de pessoas que, a passos largos, se deslocam na mesma direcção: Oeste. A mesma direcção em que, segundo o “Boletim Meteorológico, sopraria o vento em Portugal.
Mas, algo desperta ainda mais a atenção de Benjamim! Uma criança que, de mochila às costas, filme de Fellini na mão e olhar de ligeira loucura, fixava algo à sua frente (algo que Benjamim conseguiu identificar). A criança deslocava-se, precisamente, no sentido oposto ao de todos os outros. O olhar da criança cruza-se com o de Benjamim.
Ambos vêem algo a esvoaçar, como uma ave perdida (esquecida?). Consegue ler-se no panfleto esvoaçante “Sean Riley & The Slowriders em Barcelos – dia 18 de Abril”.

Benjamim levanta-se de um sobressalto. É um interminável fim de tarde em que o sol já não brilha. Talvez no Porto, ou Lisboa! Em Barcelos não.
Procura o chão. E, de novo, Benjamim se acomoda no banco, percorrido por uma desconfiada alegria, como se milhares de vidros no seu estômago tivessem sido (por breves momentos) reduzidos a pó. No chão, encontrava-se apenas um cartaz onde nada se conseguia ler: alguma ave dispusera, por cima do jornal, uma quantidade significativa de excrementos.
Ilustres Excrementos de Ave




Bernardes

Prelude

I
“And I’ll tell it, and think it, and speak it, and breathe it, and reflect from the mountain so all souls can see it. Then I’ll stand on the ocean until I start sinkin’. But I’ll know my song well before I start singin’.”
-Bob Dylan, in Hard Rain’s Gonna fall”

Nós sabemos que drogas são más, sexo é mau, rock n’ roll já não é moda e para quem ainda não tenha percebido: o Andy Warhol já morreu. Ouço línguas e a chuva continua a cair. Da mesma forma que caiu antes. Continuo a andar em estradas sem sinalização, em oceanos sem água. É cansativa a continuidade.
Mas continuo. É uma odisseia de descoberta. Estou indo para casa, ainda não a encontrei, estou indo para lá apesar de tudo. Penso que a deixei um dia. E agora vou ao encontro dela outra vez. Não tenho quaisquer ambições: estou indo apenas ao meu encontro.
Afastadas as possibilidades extremistas. Afastados os perigos da paragem no tempo, vivo num gira-discos, sou quem não sou: obviamente gosto da ideia. Não se encontram no mapa as ruas da revolução. O sustento advém depois. Claro que neste espectáculo não se cria nada para além de tecnologia; e mesmo essa não é criada, é desenvolvida.
Penso na música americana do século XX. Música popular lá está. Aquela que falava do que mais ninguém falava. A música dos negros: Jazz! Folk Music! Blues! Depois há música dos que viam filmes do Nicholas Ray e comiam gelados em “drives in”. Aparece o Rock n’ roll! E Brando, e a moto, e Dean, e todos os rebeldes. E a paranóia. Vai tudo explodir. Virá numa nuvem e destruirá o espaço.
Ah! Como tudo isso me encanta! Tecnicholor, clima de guerra-fria, cinema Noir, crimes por resolver na Hollywood dos 50’s, estrelas de cinema com sorriso bonito e mente conturbada, escândalos políticos, assassinatos, grandes discursos na televisão, cidades cheias de cor e vivacidade que a nova moda trouxe consigo, corrupção no FBI, corrupção na CIA, revoltas na rua, estudantes furiosos, Elvis a engordar, América. Mundo. Europa. “To the moon”, gritam! Marlon Brando com a manteiga (nós sabemos onde), artistas loucos, pessoas loucas, mudança, mudança, fogo, fogo, fogo!
Em suma, se queres fazer a tua arte vai passear o cão. Porque de repente serás livre. Não terás mais a tua mente a preencher-te a mente. Não precisas escrever se não quiseres. Na verdade, se quiseres, não precisarás de fazer nada!


Zita Esquerda de Sá

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Última Página

Abri a janela e nevava lá fora. Fiquei ali a contemplar aquela maravilha natural.
Não sei por quanto tempo ali estive, especada, diante da janela. Só sei que a cada floco de neve que caía sentia mais a falta dele, do Arthur.
Sem conseguir suportar aquela lembrança, uma lágrima começou a percorrer a minha face, talvez procurando um caminho por onde seguir, um caminho, algo que eu talvez não tenha feito mais após a morte de Arthur.
Fui até à gaveta do armário onde Arthur guardava a sua colecção de pedras, pedras essas que continham um grande valor para ele – cada uma tinha sido encontrada num dos países que ele visitara. O Arthur era um grande viajante, adorava conhecer novas culturas, novos mundos, pessoas de raças diferentes.
Quando nos conhecemos, o Arthur confessou-me que todos os dias contemplava as suas pedras como quem procura algo. Tomei esta confissão como se fosse uma borboleta que pousara na minha mão por acaso: um acontecimento que era impossível prestar-lhe atenção sem arriscar perdê-lo.
Em vez de trocarmos números ou moradas, como todos os casais, ele deu-me uma das suas pedras e disse-me que não me preocupasse, porque em breve aquela pedra iria querer voltar para casa e aí nos voltaríamos a encontrar. Confesso que não acreditei muito no que ele disse. Fiquei muito triste, pois aquilo só poderia ter sido um pretexto para nunca mais nos vermos.
Passaram-se algumas semanas e eu não conseguia esquecer o Arthur, fechava os olhos e lá aparecia ele com o seu sorriso radioso como um sol de Verão; os olhos tinham um azul-vivo de um céu de Inverno; os cabelos tinham um tom de Outono.
Já não acreditava que algum dia pudesse voltar a vê-lo, a cada dia que passava sentia mais a sua falta, estava apaixonada, mas ele não sentia o mesmo por mim, certamente.
Numa manhã de sol, quando abri a porta para ir dar a minha corrida matinal, encontrei em cima da mesa de jardim, num livro aberto, uma rosa vermelha de caule longo, a marcar o seu lugar.
A página marcada falava de uma rapariga que era muito triste e infeliz, mas quando começava a ler esquecia-se da sua própria história e vivia a do livro. Ela fechava os olhos e imaginava-se em cima de um rochedo enorme, de braços abertos, e de repente a voar por cima do mar, onde a lua se fazia reflectir, e sobre as montanhas que se erguiam umas após outras, assentando depois numa cidade misteriosa em que tudo era feliz, onde até os pássaros cantavam num tom mais alegre.
Fechei o livro e corri para dentro de casa, batendo a porta atrás de mim, deitei-me no meu baloiço pendurado ao tecto. Era ali onde eu gostava de me deitar para estar sozinha, comigo.
Comecei a ler o livro do princípio...
Algumas semanas depois, sentei-me em frente a um lago a olhar para a pedra que Arthur me havia dado. Era de um azul forte. Até que alguém me tapou os olhos com as mãos e me sussurrou ao ouvido: "Não consigo viver sem ti, amo-te". No mesmo instante, senti o coração a tentar sair-me do peito. Voltei-me e não queria acreditar, era ele, ele havia me encontrado!
Numa noite de luar, Arthur apareceu no meu quintal e espalhou várias pétalas de rosas que iam desde a porta de saída até ao baloiço de jardim. Depois, tocou à campainha e correu até ao baloiço. Ao abrir a porta, segui as pétalas e lá estava ele, sentado no baloiço, com mais um livro que me ofereceu e que eu nunca cheguei a ler, guardando-o na gaveta. Também me deu um colar com uma pedra: esta era de um roxo pouco carregado. Mas, desta vez, ao colocar-mo, disse: "Quando esta pedra quiser voltar a casa, será porque um de nós morreu". Com isto estava a querer dizer que nunca nos iríamos separar.
Perguntei-lhe porque me quisera ver ao meio da noite e ele revelou que era para se certificar que eu estava a sonhar com ele.
Todos os momentos passados com Arthur eram assim como estes, de uma grandeza enorme.
Alguns dias após a morte de Arthur, revi um dos filmes que havíamos feito numa das nossas viagens pelo mundo.
Depois de algumas paisagens, aparecemos os dois abraçados e felizes. Lembrei-me do calor do seu corpo, do toque das suas mãos, do sabor dos seus lábios.
Parei o dvd e passei o dedo no rosto de Arthur, quando dei por mim estava a chorar! Como não era capaz de parar, enfiei o punho cerrado na boca para não fazer barulho.
Como era possível estar-se tão vivo num momento, e depois parar tudo, não apenas o coração e os pulmões, mas a forma como sorria devagar.
"Não consigo viver sem ti" costumava ele dizer-me, e agora apercebi-me que ele nunca teria de o fazer.
Retirei o colar que ele me dera e guardei-o na gaveta, junto das suas pedras.
Ouvi no dvd ele dizer "volto já".
Desliguei o televisor e retive aquelas últimas palavras como se Arthur ficasse assim, suspenso para sempre, à espera que eu o encontrasse, de novo.
Acabei de ler o livro e na última página dizia: "O melhor de ti comigo irei levar e por ti, sempre irei olhar."




Algumas expressões retiradas do livro "Dezanove Minutos" de Jodi Picoult.


Catarina Cachada

Escrevi sobre Arte!


Notável paisagista, caricaturista e retratista barcelense, Gonçalves Torres, foi uma prestigiada descoberta para mim.
Numa tarde um pouco atribulada resolvi ir até à Biblioteca Municipal de Barcelos, distraída com os meus pensamentos, falando com os meus botões. De repente algo me despertou a atenção, um cartaz que anunciava uma exposição de pintura que lá se encontrava desde o dia 21 de Fevereiro até ao dia 30 de Março. Achei interessante e resolvi ir ver. Fiquei surpresa, pelo seu cariz realista, com as 34 obras de arte, cujos temas eram paisagens, monumentos e “gentes” de Barcelos.
Gonçalves Torres desenhava com sentimento, pintava com o coração. Todas as paisagens retratadas transparecem jovialidade, algo que hoje em dia já não se sente “por cá”; fazia caricaturas e retratos de ricos e pobres (pobres na maioria), talvez porque se identificava mais com o lado mau da vida, devido ao facto de ser proveniente de uma família não muito abastada.
Tendo Braga como”casa”, Barcelos esteve sempre no seu horizonte, onde tudo tinha começado. Como barcelense sempre irá ser recordado, esta ilustre semente que um dia voltou à terra onde foi semeada.


Heika Castro

Os Galos Aconselham

Esta semana os Galos aconselham:

Cinema:
Em Paris (2006), Christophe Honoré

Literatura:
Dezanove Minutos(2007), Jodi Picoult

Arte:
Exposição "Timor Loro Sae", do Museu da República e Resistência
(Biblioteca Municipal) 3 a 20 de Abril

Musica:
Against Which the Sea Continually Beats(2007)
Glenn Jones


Os Leopardos

Nós éramos os leopardos, os leões. Os que tomarão o nosso lugar serão chacais, hienas. E todos nós, leopardos, leões, chacais e carneiros, continuaremos a pensar que somos o sal da terra.

(Burt Lancaster, in Il Gattopardo de Luchino Visconti, 1963)


A Revolução Francesa acabou. O Racionalismo já foi inventado. O Grito do Ipiranga já se sucedeu. O nazismo já foi, embora que em teoria, erradicado. O Existencialismo perdeu o fulgor de outrora. O próprio Muro de Berlim não aguentou. Tudo acabou. Não sei muito bem sobre o que escrever, dado que não existem mais razões para continuar. Condeno-me já às consequências do que não sei.
É também de mau tom especular sequer que será aqui a fonte da invenção. A questão é: até que ponto precisa o Homem de estar em constante mutação, ou melhor, em constante descoberta, para seu valor (não) ser testado.
Julgo haver nesta sociedade tema para continuação. Falo da sociedade portuguesa ou na mundial, talvez apenas na barcelense. De qualquer modo, o ser humano parece-me todo igual (este “igual” pode ser tema de “discussão”). Penso existir uma força que o faz mover-se. Do meu profundo idealismo acredito não ser a economia a dita força. Não sei se essa força vem dos clássicos. Ou da música. Da erudição em geral. Ou se por sua vez é fruto de ideias mal digeridas da televisão pública.
Resta a política: o crucifixo da nação. A rua volta a encher-se, desta vez com o vazio de idealismo: herança perdida. Será a rua determinante agora? As palavras fluem novamente, mas sem a intenção de outrora. E aqueles cujo passado se impõe em seus currículos negam o poder do partido morto, não regenerado. O barco continua a navegar mas em breve se afundará. Enquanto isso permanecerão a olhar o que já passou.
Digam à vontade que este, ou outros textos, são de cariz político ideológico invertido à esquerda radical. Não me interessam conclusões. Busco argumentos. Além disso a extrema-esquerda está morta. Resta a tristeza do falhanço...
Assim sendo, na bonita arte de maldizer condiciono-me agora numa luta, à partida, perdida. Tão pouco o farei. Numa tentativa frustrada de não escrever o que penso, mas sim o que “deve” ser dito: negarei alguma vez ter assistido a uma aula de filosofia. Efectivamente os tempos estão a mudar. E nós, os leopardos, permaneceremos aqueles que, fingindo não ver o vento passar, continuarão a ser a essência deste mundo...


Isabel Arantes