quinta-feira, 10 de abril de 2008

Otto & Mezzo


Ora vamos lá contar uma história. O Marcello chega à beira do Federico e diz-lhe: “Tão pá? Vamos fazer um filme?”. Federico responde: “ ’Bora pá, mas estou sem ideias”. Marcello desiludido questiona: “Mas pá, e então aquele pedacito que sobrou no outro dia?”. Ao que Federico responde: “Pá, pois é...! Mas o pior é arranjar um título”. Marcello resolve a situação dizendo: “Ouve lá, já fizeste oito filmes, e tens metade de filmagens sem rumo, não me parece tão difícil assim: 8 ½, pá!”.
Wait a minute, um filme chamado 8 ½ (Otto e Mezzo)? Isto não vai dar certo...
O filme começa. Ouve-se lá ao fundo um som. Carros alinhados e um autocarro. Marcello olha para idosos ao seu lado esquerdo. Subitamente o ar condicionado sufoca-o. Tenta, desesperadamente, abrir a porta. Não abre. Porra ajudem-no! Ninguém ajuda, e ele continua, mas ninguém ajuda, tudo olha, ninguém vê. Até que ele sai e voa. Aí vem o mundo felliniano montado num cavalo. “Desce, definitivamente”. Marcello acorda.
“Que está a preparar de interessante? Mais um filme sem esperança?”. Não, não, alto lá: o que mais há aqui é esperança, não fosse este um filme sobre um realizador de cinema com uma depressão e obcecado por uma deusa, chamada Cláudia Cardinale. Pode não haver luz ou esperança, porém Cláudia entra em cena e tudo pára. Nem a banda sonora de Nino Rotta se impõe. Não! Esta é Cardinale, a Cláudia das formas perfeitas.
O Filme continua...
Mastroianni diz a Fellini: “Eu deveria era a estar a fazer filmes com a Sophia e com o De Sica, não estas tuas fascinações pela irrealidade. És louco e eu sou pior que tu”. Fellini faz-lhe a vontade e intelectualiza o texto...
Comunismo está lá. Pois claro. Está sempre, não se pode fazer um filme sem a componente socialista. Até porque fica bem dizer: “O marxismo é uma boa teoria. Mas na prática...”. Como tal perguntam a Marcello (sim, volta a ser Marcello) quais as relações entre o catolicismo e o marxismo. Ao que Mastroianni (não, já não é Marcello) responde: “Quer saber a que partido político pertenço?”. Obviamente que Fellini foge à questão... Ainda não vos contei? Marcello é Mastroianni e Mastroianni é Federico, este por sua vez é Fellini.
E para quem ainda não tinha percebido que está a ver Fellini então suas dúvidas deixam de fazer sentido 50 minutos após o início do mesmo. Aí vem a típica dança, sexual e propícia a orgasmos inesperados. Pode ser igualmente mote para sentir a nostalgia da infância perdida...
“No meu filme acontece de tudo”. Por isso há quem substitua cinema pela vida. Pois nesta não há oportunidade de perguntar: “Senhor realizador, o que faço?”. Porém, não é no cinema que aprendemos a fazer “um filme honesto, sem nenhum tipo de mentiras” pois o cinema existe na vida, e a vida não passa de um cinema: irreal. O sonho do autor é frustrante: o filme “que pudesse ser um pouco útil a todos; que ajudasse a enterrar para sempre o que de morto levamos dentro de nós”. Não é possível, porque nem o próprio é capaz de enterrar o que quer que seja.
Cláudia volta: “Lindíssima. Jovem e antiga. Criança, mas já mulher. Autêntica, solar. É ela, sem dúvida, a salvação”. Cláudia percebe que o papel que lhe é reservado no filme não existe. Tem toda a razão, de facto não existe o papel. Nem sequer existe o filme. Não existe nada. Em lado algum. Mastroianni só quer que tudo acabe...
Resta o fim. Eles rodeiam-no. Fugir que nem um romântico incurável é a solução:
“O que é esse clarão de felicidade que me faz estremecer e me força, vida. Peço-vos desculpa, doces criaturas, não tinha percebido. Como é justo aceitar-vos, amar-vos. Como é simples. Sinto-me como liberto. Tudo me parece bom. Tudo tem um sentido, é verdade. Gostaria de explicar. Mas não consigo... Voltou a ser como era. De novo confuso. Mas esta confusão sou eu! Sou como não queria ser e isso já não me assusta. Dizer a verdade, o que não sei, no que acredito, o que ainda não encontrei. A vida é uma festa! Vivemo-la juntos!”. Circo.

Porreiro, pá!




Isabel Arantes

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