quinta-feira, 3 de abril de 2008

Última Página

Abri a janela e nevava lá fora. Fiquei ali a contemplar aquela maravilha natural.
Não sei por quanto tempo ali estive, especada, diante da janela. Só sei que a cada floco de neve que caía sentia mais a falta dele, do Arthur.
Sem conseguir suportar aquela lembrança, uma lágrima começou a percorrer a minha face, talvez procurando um caminho por onde seguir, um caminho, algo que eu talvez não tenha feito mais após a morte de Arthur.
Fui até à gaveta do armário onde Arthur guardava a sua colecção de pedras, pedras essas que continham um grande valor para ele – cada uma tinha sido encontrada num dos países que ele visitara. O Arthur era um grande viajante, adorava conhecer novas culturas, novos mundos, pessoas de raças diferentes.
Quando nos conhecemos, o Arthur confessou-me que todos os dias contemplava as suas pedras como quem procura algo. Tomei esta confissão como se fosse uma borboleta que pousara na minha mão por acaso: um acontecimento que era impossível prestar-lhe atenção sem arriscar perdê-lo.
Em vez de trocarmos números ou moradas, como todos os casais, ele deu-me uma das suas pedras e disse-me que não me preocupasse, porque em breve aquela pedra iria querer voltar para casa e aí nos voltaríamos a encontrar. Confesso que não acreditei muito no que ele disse. Fiquei muito triste, pois aquilo só poderia ter sido um pretexto para nunca mais nos vermos.
Passaram-se algumas semanas e eu não conseguia esquecer o Arthur, fechava os olhos e lá aparecia ele com o seu sorriso radioso como um sol de Verão; os olhos tinham um azul-vivo de um céu de Inverno; os cabelos tinham um tom de Outono.
Já não acreditava que algum dia pudesse voltar a vê-lo, a cada dia que passava sentia mais a sua falta, estava apaixonada, mas ele não sentia o mesmo por mim, certamente.
Numa manhã de sol, quando abri a porta para ir dar a minha corrida matinal, encontrei em cima da mesa de jardim, num livro aberto, uma rosa vermelha de caule longo, a marcar o seu lugar.
A página marcada falava de uma rapariga que era muito triste e infeliz, mas quando começava a ler esquecia-se da sua própria história e vivia a do livro. Ela fechava os olhos e imaginava-se em cima de um rochedo enorme, de braços abertos, e de repente a voar por cima do mar, onde a lua se fazia reflectir, e sobre as montanhas que se erguiam umas após outras, assentando depois numa cidade misteriosa em que tudo era feliz, onde até os pássaros cantavam num tom mais alegre.
Fechei o livro e corri para dentro de casa, batendo a porta atrás de mim, deitei-me no meu baloiço pendurado ao tecto. Era ali onde eu gostava de me deitar para estar sozinha, comigo.
Comecei a ler o livro do princípio...
Algumas semanas depois, sentei-me em frente a um lago a olhar para a pedra que Arthur me havia dado. Era de um azul forte. Até que alguém me tapou os olhos com as mãos e me sussurrou ao ouvido: "Não consigo viver sem ti, amo-te". No mesmo instante, senti o coração a tentar sair-me do peito. Voltei-me e não queria acreditar, era ele, ele havia me encontrado!
Numa noite de luar, Arthur apareceu no meu quintal e espalhou várias pétalas de rosas que iam desde a porta de saída até ao baloiço de jardim. Depois, tocou à campainha e correu até ao baloiço. Ao abrir a porta, segui as pétalas e lá estava ele, sentado no baloiço, com mais um livro que me ofereceu e que eu nunca cheguei a ler, guardando-o na gaveta. Também me deu um colar com uma pedra: esta era de um roxo pouco carregado. Mas, desta vez, ao colocar-mo, disse: "Quando esta pedra quiser voltar a casa, será porque um de nós morreu". Com isto estava a querer dizer que nunca nos iríamos separar.
Perguntei-lhe porque me quisera ver ao meio da noite e ele revelou que era para se certificar que eu estava a sonhar com ele.
Todos os momentos passados com Arthur eram assim como estes, de uma grandeza enorme.
Alguns dias após a morte de Arthur, revi um dos filmes que havíamos feito numa das nossas viagens pelo mundo.
Depois de algumas paisagens, aparecemos os dois abraçados e felizes. Lembrei-me do calor do seu corpo, do toque das suas mãos, do sabor dos seus lábios.
Parei o dvd e passei o dedo no rosto de Arthur, quando dei por mim estava a chorar! Como não era capaz de parar, enfiei o punho cerrado na boca para não fazer barulho.
Como era possível estar-se tão vivo num momento, e depois parar tudo, não apenas o coração e os pulmões, mas a forma como sorria devagar.
"Não consigo viver sem ti" costumava ele dizer-me, e agora apercebi-me que ele nunca teria de o fazer.
Retirei o colar que ele me dera e guardei-o na gaveta, junto das suas pedras.
Ouvi no dvd ele dizer "volto já".
Desliguei o televisor e retive aquelas últimas palavras como se Arthur ficasse assim, suspenso para sempre, à espera que eu o encontrasse, de novo.
Acabei de ler o livro e na última página dizia: "O melhor de ti comigo irei levar e por ti, sempre irei olhar."




Algumas expressões retiradas do livro "Dezanove Minutos" de Jodi Picoult.


Catarina Cachada

1 comentário:

el psi disse...

Uma pedra não, um olhar, um sorriso, talvez nada ou, até, o silêncio. Há-de a voz do indizível expressar o que eu quero, mas não consigo dizer! Talvez, seja melhor, então, calar. Conserva o dvd e o livro, as tuas relíquias mais sagradas, numa gaveta bem fechada. Mas tem cuidado, não deixes o tempo, que tudo asmaece, lá entrar.
Parabéns...