segunda-feira, 21 de abril de 2008

Solidarização do Egocêntrico

Revejo-me no espelho, uma vez. Apenas uma vez até descobrir, desolar, solidificar e dizimar o que ouço lá no fundo da audiência teatral gritar. “Faz. FAZ!”, ouço-os dizer num murmúrio ensurdecedor. O personagem ao meu lado declama: “Estarás aqui amanhã, mas os teus sonhos não. Não o faças”. Convincente, quase irrefutável.
Essa falsa inocência deixa-me com febre de soltar as palavras, os meus lábios mexem mas não consigo ouvir as palavras que se formam. De repente, todos os holofotes se centram no espelho que reflecte aquilo que eu deveria ser.
Lentamente, abandono o palco, a luz reflectida pelo espelho persegue-me, ofusca os demais aqui presentes. Alguém transporta o espelho, que ainda reflecte a minha imagem, para o centro do palco.
Continuo, sem o menor ruído, abandonando o espaço. Do meu lado algo avisa “PROIBIDO fumar”. Um impulso, só preciso de mais um impulso para alcançar essa porta de ferro. Parece entreaberta! No chão um painel publicitário que anuncia “Coming Soon”, mais à frente o interruptor. Apresenta-se off.
Uma mão suave me agarra, de ancestral toque e subtileza, que apenas permite a percepção de sua presença através do odor pleno de êxtase liliáceo que liberta. Pormenor? Pontas pavorosamente massacradas pelo acaso. Esta mão tem tão grande poder que nem toda a força conhecida a separaria do meu braço amedrontado, que segura.
“Pensas que consegues trocar um sofá confortável por mudança?”
O aperto suaviza e alcanço a porta. Vejo-me rodeado por nada, um nada pronto a ser colorido, tal como a última página de um caderno que espera incessantemente que algo em si seja escrito, desenhado, riscado.
Click, a porta fecha. Caminho e as minhas pegadas ficam marcadas no nada. Não sinto, não vejo, não ouço, não cheiro, nada saboreio de tanto nada em que me perco, me infiltro, que serei dentro de breves momentos…!
Um toque suave, a percepção. Ruídos de lábios que chocam, e se reproduzem formando palavras. Um odor, o êxtase! A luz, a sombra, a cor, tudo se forma.
A mão. Essa mão, companheira de ilusões e de fantasias ao longo de toda a realidade.
“Estaremos alguma vez preparados para mais uma página? E para a última página?”, ouço.

“Não te esqueças: já estás a manusear A Página”.


Joana de Neves

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