quinta-feira, 15 de maio de 2008

Gigue

III
Queria ir ao concerto. Queria que o tema deste texto fosse real, existisse. Mas que interessa? Nuns dias esqueço tudo. O cérebro humano é fascinante: permite esquecer o que não é importante. Vamos fingir:
Acordei às 7h. Era o segundo dia da viagem, suas razões já expliquei, e não me apetece dizer tudo de novo. Anyway, pus os pés a caminho e fui por esse mundo fora. Caminhei até me esquecer de como conjugar o verbo “andar”. Continuei e não parei. Fazia calor, e eu nada tinha, excepto a típica mochila às costas. Andei mais um pouco, cansei-me e andei mais um pouco.
Vi um mundo que não tinha visto até então. Vi casas em cima de nuvens, vi flores a crescer em pedra, vi uma cadeia de lojas a fechar, vi um buraco negro. Depois apareceu uma mulher idosa, com ar de vidente (sim, sim, aquelas com verrugas, mãos magras e finas, cabelo grisalho e voz rouca) que me disse que meu lugar não era ali. Eu fugi por entre sombras e nunca mais a vi.
Ao passar pela rua 33 do sítio X vi um homem a morrer de angústia: a sua vida tinha sido levada por uma cabra. Claro que logo de seguida a Maggie (como lhe chamavam) veio aos gritos dizer que a cabra não tinha como levar a vida de ninguém, porque a vida é impossível de esconder no bolso.
Continuei a caminhada. Perdi o meu ipod. Ai é verdade, eu não tenho ipod. Enfim, perdi o meu gira-discos ambulante. Estava a ouvir o Mr. Tambourine. Ele dizia-me que estava pronto para ir para qualquer sítio. Tudo o que eu pensava era em saber o que fazer. Ouvia agora Desolation Row. Mas estava, na realidade, a pensar na bomba atómica.
Andei e andei. Sinais de cansaço apareciam agora. Não quis mais continuar uma luta que não era a minha. Não mais consegui ler. Percebi finalmente que não tenho que pertencer a ninguém. Nem sequer a mim própria...
Logo a seguir entrei na toca do lobo. Mas que diabo: estava tudo pedrado. Não consegui falar com ninguém. Havia lá um miúdo muito jovem. Simplesmente lhe chamavam “Citizen K”. Despido de jovialidade. Tentei animá-lo e fazê-lo voltar a si, mas estava com demasiadas toxinas e elementos estranhos no sangue. Até que veio a mãe dele e me perguntou porque tinha drogado o seu filho. Eu disse-lhe que nunca o tinha visto antes, que apenas o tentara reanimar. Como é imaginável, a senhora não acreditou em mim. Estava furiosa. Partiu os meus discos e disse que Bob Dylan era música de Satanás. Desta feita quem ficou furiosa fui eu: chamei dois arruaceiros dos Hell’s Angels, acabadinhos de sair da “prisa”, ainda fumegavam e tudo, para lhe darem uma lição. Quando dei por mim já lá estava aquela miúda do telemóvel que, após ter batido na Prof. de inglês (porque nunca mais nenhum professor de francês se aproximou dela...) e assistido ao milésimo nono episódio daquela série, cujo nome não é digno de ser pronunciado neste local, resolveu juntar-se à festa.
Tudo o que eu agora queria era dormir. Ideais como liberdade, igualdade, (fraternidade), justiça social, viagem intelectual, não me passavam mais pela cabeça. Tudo o que eu queria era dormir. Dormir e não acordar neste século. Dormir. Simplesmente dormir. Deitar-me e adormecer. Depois disso restava o sono. Aquela coisa que se dorme.
Voltava então para casa quando começaram a chover Manifestos. Porcaria de mundo capitalista que vive obcecado com economias planificadas! Comentei com alguém o sucedido. Como resposta ouvi: “De que estás a falar?”. Mais uma vez me lembrei do que dizia Travis Bickle: “Loneliness has followed me my whole life. Everywhere. In bars, in cars, sidewalks, stores, everywhere. There's no escape. I'm God's lonely man...”
Mas que hei-de fazer agora? A liberdade foi embora e já não conheço mais a constituição do corpo humano. Ficarei no oceano até começar a afundar? Entretanto alguém voltou a atacar a minha imaginação. Let’s get stone...
Resta-me o sono eterno que anseio. Assim sendo, despeço-me de ti, Zimmerman dos pobres, como um cão se despede de seu dono antes de ser atropelado: com todo o respeito e gratidão.
Cansaço.

“You lose yourself, you reappear
You suddenly find you got nothing to fear
Alone you stand with nobody near
[…]
And if my thought-dreams could be seen
They'd probably put my head in a guillotine
But it's alright, Ma, its life, and life only.”

Bob Dylan, in Its Alright Ma (I’m only bleeding)


Zita Esquerda de Sá




(By the way se terminarem de ler estas 3 partes e continuarem a pensar que sou de esquerda radical aconselho-vos a irem à lojinha de conveniência aí do sítio e comprarem uma foice e um martelo.)

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