quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Século XXI sem Antoine Doinel


Paris, as ruas estão geladas e a minha mente perdeu-se no meio de toda esta apatia. Sonho com a luz da tela da Cinematheque. Outra dimensão que ninguém vê. Atingi algo que jamais fora atingido; estou numa meta que ninguém passou; o objectivo que ninguém viu ainda. Ontem ouvi meus pais discutirem mais uma vez sobre as contas a pagar, e o dinheiro que não existe para o fazer. Falam de mim e julgam que não sei. Sou criação de um ser que não existe na minha vida, talvez por isso me sinta perdido e talvez por isso não me queira encontrar.
A minha mãe está morta. A minha família é uma fachada. A escola não me responde. Fujo para o lugar onde me adaptei imediatamente:
Voltei a casa para ver o novo de Hitchcock. É o único nome que sei. De todos aqueles que vejo não sei identificar quem são, o que são, quando foram feitos. Eles em mim existem e não quero voltar de novo ao outro lugar onde não existo. Depois tudo parecia novo. As ruas, de repente, não estavam geladas, havia música no ar, e os rostos não pareciam quebrados. A luz do preto e branco inspirou-me a viver a cor da vivência não desejada para mim. O meu nome é Antoine Doinel. Vivo aprisionado a um movimento artístico e social perdido nos anos 60. No entanto continuo vivo em cada pessoa, que 50 anos depois se identifica com uma arte e com uma vida que já não existe em concreto. Estou perdido numa utopia fechada em livros de história.
Em 1968 o mundo explodiu. Assassinaram, para provar serem capazes de algo que nós, os mudos, não podíamos fazer. Deram-nos voz, segundo eles. Paris incendiou. Porém já ardia desde anos anteriores.
Nouvelle Vague é o nome. Paris o local. Truffaut e Godard os nomes mais soantes. Belmondo o rosto. Léud o meu corpo.
François Truffaut abandona a infância conturbada e renasce na Cinematheque Française. Depois de quase 3000 filmes vistos (numa época em que não existia home cinema) com 25 anos, começa a fazer críticas para a Cahiers du Cinema. Fiel ao “cineliteratura”, criou filmes baseados em grandes clássicos da literatura norte-americana e francesa. Por seu lado o Godard explodiu as suas tendências esquerdistas/ maoístas na tela.
E a Nouvelle Vague acabou.
Uma década antes os dois génios haviam colaborado. Anos antes o sonho em comum havia-se concretizado. A Nouvelle Vague não é mais que a possibilidade de jovens sonhadores, amantes de cinema, cheios de ideais e com meia dúzia de trocos no bolso, fazerem cinema. Truffaut estreia, em Cannes, “Les 400 Coups” (Os 400 Golpes): o primeiro passo. O cinema de autor ganha vida. Tudo o que F. Truffaut defendera enquanto crítico coloca em prática neste filme.
Na primeira metade de “400 Golpes” nada se vê que não desencanto, desilusão, abandono. Nos minutos finais surge a liberdade que só o cinema pode dar. O Sistema no filme de Truffaut não vence. O final de “Les 400 Coups” é brilhante!
Trazer o cinema dos estúdios para as ruas, adoptar pequenos fait-divers, explorar a imaginação dos novos autores, eram as palavras de ordem. Revalorizar o papel da expressividade física. Valorizar o papel da banda sonora.
Também Jean-Luc Godard faria o mesmo em “A Bout de Soufle” (O Acossado). A humanidade da história e a sua simplicidade, adornadas por uma Paris nunca antes filmada daquele modo, tornou o filme um ícone do Cinema e do movimento em si.
Tal como a música folk o fazia, na América, com nomes como Dylan, Baez, Seeger e tantos outros, na velha Europa o cinema acompanhava os jovens que desejosos de mudança, se inspiraram na arte do passado, para obter a liberdade do futuro. O cinema de autor foi um pontapé no sistema. Ninguém escapou imune: a educação, os valores, a família, as instituições foram criticados.
Em 1968 a revolução toma a Europa mais uma vez. Em Cannes, os jovens controlam o festival. Em Paris, os jovens controlam as ruas. Maio de 68 ficaria para sempre associado à revolução.
O sonho finda!

Em discurso directo, Antoine Doinel

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